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PRISÃO CAUTELAR.

ANÁLISE DA MANUTENÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA PARA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA NA LEI 12.403/2011.

 

Artigo redigido em 2013.

INTRODUÇÃO.

    Desde a edição do primeiro Código de Processo Penal, o fundamento garantia da ordem pública encontra-se calcado em seu dispositivo n° 312, como hipótese autorizadora da decretação da prisão preventiva.

    Na promulgação da Lei 12.403 de 04 de Maio de 2011, que alterou boa parte dos dispositivos referentes às prisões cautelares, mesmo após severas críticas doutrinárias, mantiveram-se intocáveis os fundamentos autorizadores da prisão preventiva, entre eles, a garantia da ordem pública.

   

    Entretanto, esta previsão legal não é aceita pacificamente na doutrina frente à dificuldade de se compreender o verdadeiro papel que desempenha.

    Considerando a natureza cautelar da prisão processual, é imperioso que os requisitos para sua decretação seja analisado de forma sistêmica, em outras palavras, somente àqueles de puro caráter cautelar poderiam ensejar a decretação da medida, sob pena de se imputar ao agente uma punição antecipada, anterior ao devido processo legal.

    Objetivando a melhor compreensão do tema abordado e uma confrontação das teses positivas e negativas a seu respeito, mas sem a pretensão de esgotar o referido assunto, o presente artigo apresentará o conceito e os requisitos acerca das medidas cautelares pessoais, focando especificamente na prisão preventiva decretada com base na garantia da ordem pública.

  1. NATUREZA CAUTELAR.

    A natureza cautelar da prisão provisória ou processual é o norte que se toma neste estudo para verificar o cabimento do termo garantia da ordem pública como autorizador da restrição da liberdade antes do fim da persecução penal.

    A cautelaridade (ou natureza cautelar) da prisão provisória, como também da liberdade provisória, decorre da Constituição Federal, ao estabelecer o princípio constitucional de liberdade, e, mais especificamente, o princípio da inocência (art. 5°, LVII, CR). Ainda nessa linha específica, a cautelaridade também pode ser afirmada pelo princípio da necessidade, baseado em que alguém somente pode ser preso ou mantido na prisão se não for cabível a liberdade provisória, conforme se depreende do artigo 5°, LXVI, da Constituição Federal.

(FEITOZA, Denilson. Direito Processual Penal: Teoria, Crítica e Práxis. 7. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 866).

    O processo é um ato que leva um determinado tempo para se desenvolver, ainda que existisse um procedimento ágil e imune a procrastinações, sempre restaria um inevitável espaço temporal entre o pedido formulado e a correspondente resposta jurisdicional. Dessa realidade resulta no ordenamento a necessidade de prever medidas por meio das quais se possam antecipar, excepcionalmente, alguns resultados da atividade processual, caso contrario haveria o risco da tutela almejada somente ser alcançada quando já inexistentes os motivos que a reclamavam.

    Na técnica processual, essas providências tomam o nome de cautelas e podem ser adotadas pelo juiz, de forma rápida e urgente, após uma sumária cognição dos requisitos que se autorizam, sempre em caráter de excepcionalidade.

(GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES, Antonio Magalhães Filho; FERNANDES, Antonio Scarance. As Nulidades no Processo Penal. 11. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 261.).

    Entre as medidas cautelares presentes na lei processual, a prisão preventiva é, com certeza, uma das mais gravosas, eis que seu efeito é a restrição da liberdade do indivíduo e, logo, uma antecipação do efeito da pena, “diversa da prisão de natureza penal, a custódia cautelar não objetiva a punição, mas constitui apenas instrumento para a realização do processo ou para garantia de seus resultados” .

    As medidas cautelares de natureza processual penal buscam garantir o normal desenvolvimento do processo e, como consequência, a eficaz aplicação do poder de penar. São medidas destinadas à tutela do processo.

     A medida cautelar se reveste de caráter instrutório, existe exclusivamente para resguardar o resultado final do processo, não devendo ser utilizada para outro fim que não vise salvaguardar o objeto, ou seja, para que eventual sentença condenatória tenha total eficácia após a tramitação processual.

    Mesmo com sacrifício de valores considerados essenciais à realização da justiça, em certos casos, o legislador se vê compelido a admitir essa antecipação, pois a demora exigida para a solução do conflito pelas vias normais arriscaria tornar inócua a decisão definitiva. As atividades necessárias a tais finalidades – que compõem o processo cautelar – visam, portanto, à emanação de um provimento acautelatório e propiciam condições para o êxito das tarefas de conhecimento e execução. Trata-se de um instrumento a serviço do instrumento.

(LOPES JÚNIOR, 2011, p. 13.).

    Partindo-se de um ideal garantista, as medidas cautelares também devem ser analisadas de acordo com as formas processuais. Sua principiologia traz garantia ao individuo frente a eventuais abusividades perpetradas pelo Estado, logo, o sistema cautelar é orientado pelos princípios da Jurisdicionalidade, Motivação, Contraditório, Provisionalidade, Provisoriedade, Excepcionalidade e Proporcionalidade.

    Do mesmo modo, a fundamentação configura exigência básica de todos os provimentos relacionados à restrição antecipada do direito de liberdade do réu; somente através da declaração impressa dos motivos da decisão será possível reconstituir o caminho percorrido pelo magistrado para a decretação da medida extrema aferindo-se, assim, o atendimento das prescrições legais e o efetivo exame das questões suscitadas pelos interessados no provimento.

(GRINOVER, 2009. p. 264.)

    Toda decisão em matéria de prisão cautelar deve ser decretada por ordem judicial fundamentada, respeitando-se o devido processo legal e se aplicando o contraditório quando possível e compatível com a medida a ser tomada.

    Não sendo razoável em determinadas situações a adoção do contraditório pleno (por exemplo, em razão de probabilidade de fuga do acusado), este deverá ser ouvido imediatamente após a imposição da medida cautelar (ou, mesmo, subcautelar), oferecendo-se a ele assistência por advogado e oportunidade para liberdade. Haverá, conforme sugestão, uma postergação da instalação do contraditório: realizada a detenção, entrega-se ao investigado ou acusado não somente copia do requerimento como, também, cópia da decisão determinativa da cautela. Cumprir-se-á, assim, mandamentos impositivos da Convenção Americana dos Direitos Humanos.

(CÂMARA, Luiz Antonio. Medidas Cautelares Pessoais: Prisão e Liberdade Provisória. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 75.)

    Decretada a prisão cautelar, esta somente poderá se manter desde que ainda exista o suporte fático que lhe deu origem, corporificado no fumus commissi delicti e/ou no periculum libertatis, se desaparecido, deve cessar a prisão.

    A provisoriedade está relacionada ao fator tempo, de modo que a prisão cautelar deve ser decretada já se prevendo um prazo máximo e breve de duração, a fim de se evitar que ela assuma caráter de pena antecipada. Infelizmente, a legislação não prevê referido prazo, logo, não existe nada em termos de limite temporal das prisões cautelares, e, em que pese o esforço da jurisprudência em construir parâmetros para contagem de prazo, ainda permite-se sérios abusos quanto a sua duração.

    A prisão cautelar deve ser lida como uma exceção à regra, considerando a presunção de inocência e constituindo um princípio fundamental de civilidade, fazendo com que suas decretações sejam a ultima ratio do sistema.

    Dentre as medidas cautelares que podem ser adotadas em sede criminal, constituem sem dúvida as mais frequentes e também de maior gravidade aquelas que implicam restrição do direito de liberdade do acusado; diversa da prisão de natureza penal, a custódia  cautelar ou processual não objetiva o punição, mas constitui apenas instrumento para a realização do processo ou para garantia de seus resultados.

    Por fim, para decretação da prisão cautelar, deve-se sopesar a finalidade pretendida e a gravidade da medida imposta, crucial se valorar as consequências do ato e a estigmatização jurídica e social que irá sofrer o acusado, ademais, a prisão cautelar corre sério risco de se converter, ao final, em pena antecipada, uma violação ao princípio maior da presunção de inocência.

    A principal decorrência de sua eficácia determina que a ninguém se imponham flagelos desnecessários, ou, para utilizar terminologia mais corriqueira, que não se cobre do acusado mais do que aquilo que dele será ao final exigido. A cautela a ser imposta deve sê-lo de molde a não exigir antecipadamente do custodiado obrigação que, ao final, pode vir a não se consolidar. Deve ser verificada a possibilidade de condenação, observando se entre a cautela a ser imposta e a hipotética sanção há relação de estrita correspondência.

(CÂMARA, 2011, p. 111.).

    Destarte, tão somente orientado pelos princípios que informam a natureza cautelar da prisão processual, é que o magistrado poderá, sem abusividades, analisar os requisitos autorizadores da prisão preventiva, medida excepcional de restrição antecipada de um bem jurídico maior, a liberdade.

2. PRISÃO PREVENTIVA.

 

    Sendo a liberdade física do indivíduo um dos bem jurídicos mais relevantes do Estado Direito, é natural que a Constituição fixe certas regras fundamentais a respeito da prisão de qualquer natureza, pois a restrição ao direito de liberdade em qualquer caso, é medida excepcional, cuja adoção deve estar sempre subordinada a parâmetros de legalidade restrita.

    Como afirmado anteriormente, este estudo visa analisar a manutenção da prisão preventiva com base na ordem pública na nova legislação brasileira, contudo, antes do magistrado passar os olhos no cabimento deste fundamento, deve, com base nos princípios que norteiam a prisão cautelar e sua natureza, verificar a admissibilidade da medida cautelar, analisando a existência do fumus commissi delicti e do periculum libertatis.

    O requisito da fumaça da existência de um crime, como o próprio nome já diz, não significa um juízo de certeza, mas de probabilidade, é um conceito simétrico ao fumus boni iuris do processo civil, mas como ele não se confunde, é uma prognose, um indício razoável.

    Este juízo tem uma evidente função limitadora da decretação da prisão preventiva, e produz efeitos no processo por meio de uma decisão judicial racional que seja capaz de arrolar os dados aptos a convencer acerca da probabilidade concreta do acusado ter praticado o ilícito penal, bem como, da existência de ilicitude e de uma suposição razoável da culpabilidade do imputado.

    Mister destacar que aqui se fala em juízo de probabilidade, que difere de um mero juízo de possibilidade, este ultimo suficiente para uma imputação penal, mas não para a decretação da prisão preventiva, em matéria cautelar, é necessária a real probabilidade, um predomínio das razões positivas. “Frise-se que mero juízo de possibilidade não autoriza a decretação da medida excepcional”.

    A probabilidade significa a existência de uma fumaça densa, a verossimilhança (semelhante ao vero, verdadeiro) de todos os requisitos positivos e, por consequência, da inexistência de verossimilhança dos requisitos negativos do delito. (LOPES JÚNIOR, op.cit., p. 73.).

    Ora, para que se verifique o fumus commissi delicti é necessário então se garantir a existência de razoável probabilidade da ocorrência do delito. Toda via, não obstante a existência da tipicidade faz-se necessário a caracterização da ilicitude e da culpabilidade, formadores do conceito formal de crime. “Deve existir uma fumaça densa de que a conduta é aparentemente típica, ilícita e culpável”.

    Além do fumus commissi delicti, a prisão preventiva exige que, em especial, haja uma situação de perigo concreto ao normal desenvolvimento do processo, é onde se fala no periculum libertatis.

    O artigo 312 do Código de Processo Penal prevê que a prisão preventiva “poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal”.

    O periculum libertatis, para Aury Lopes Junior: “é o perigo que decorre do estado de liberdade do sujeito passivo, previsto no CPP como o risco para a ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal”.

    Contudo, referida situação de perigo é processual e deve ser lida como ações do imputado tendentes a prejudicar a fase de investigação, a deteriorar ou tumultuar as provas e com o fim de frustrar a execução de uma eventual sentença condenatória, esta ultima, tolerando-se um prognóstico de condenação do acusado, em conflito com o princípio da presunção de inocência, mas admitido perante o “risco de fuga”.

    O tema deste estudo se fulcra especificamente no requisito garantia da ordem pública, motivo pelo qual não se analisará os requisitos ordem econômica, conveniência da instrução criminal e aplicação da lei penal, bastando alegar que estes dois últimos são puramente cautelares, ao passo que a garantia da ordem pública se apresenta impura, ou seja, fora do sistema cautelar acima exposto.

    Portanto, verifica-se que ao decretar a prisão processual na sua modalidade preventiva, o magistrado deverá, orientado pelos princípios da cautelaridade e, analisando a presença do fummus commissi delicti, fundamentar sua decisão mencionando de maneira cristalina o periculum libertatis, ou seja, o risco ao regular desenvolvimento do processo. Problema surge, ao se fundamentar a prisão preventiva para garantia da ordem pública.

3. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E SUA MANUTENÇÃO NA LEI 12.403/2011.

    Considerando a sistemática das medidas cautelares, e os requisitos exigidos para a decretação das prisões processuais, encontram-se dificuldades em se aplicar o conceito de garantia da ordem pública, sem romper o sistema, e rechaçar as garantias inseridas pelas formas processuais e pela Constituição Brasileira.

    Seu conceito é conturbado, trata-se, nas palavras de Aury Lopes Junior de “um conceito vago, indeterminado, que se presta a qualquer senhor, diante de uma maleabilidade conceitual apavorante”. Mesmo que os tribunais como a doutrina tenham efetivado esforços a definir de forma clara o seu fundamento, este ainda não é pacificamente aceito, recebendo duras críticas quanto a sua existência e sua natureza, que nada se assemelha a medidas cautelares.

    A ordem pública é, sem dúvida, indesejável clausula aberta manipulada como quiser o juiz. A expressão garantia da ordem pública, pondo foco no qualificativo da ofensa, certamente compõe o rol das expressões que um certo setor doutrinário convencionou nominar disposições de sentido instável, com modulação variável, adaptáveis a momentos históricos e vontades comunitárias diversas.

(CÂMARA, 2011, p. 131 e 132.)

    Entretanto, a ordem pública vem sendo utilizada como sinônimo de alguns fundamentos, em busca de autorizar a decretação da prisão preventiva, fundamentos estes que nada revelam de natureza cautelar, e, portanto confrontam diretamente a Constituição Brasileira no que diz respeito ao princípio da presunção de inocência.

    Uma das definições mais corriqueiras é o “clamor público”, o risco produzido por um crime que gera abalo social, uma comoção tal na sociedade que abala sua tranquilidade.

    Guilherme de Souza Nucci, defendendo a prisão cautelar decretada com base no clamor público assevera que:

    Entende-se pela expressão a indispensabilidade de se manter a ordem na sociedade, que como regra, é abalada pela prática de um delito. Se este for grave, de particular repercussão, com reflexos negativos e traumáticos na vida de muitos, propiciando àqueles que tomam conhecimentos de sua realização um forte sentimento de impunidade e de insegurança, cabe ao judiciário determinar o recolhimento do agente.

(NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 602.).

    Fernando Capez faz espantosa apreciação ao delimitar a aplicação do princípio in dubio pro reo apenas quando da produção da sentença, asseverando que o mesmo não tem aplicação no âmbito da prisão cautelar. Além do mais, sustenta que nesta fase o que se aplica é o in dubio pro societate, em gritante contramão a Constituição Federal e consequentemente ao sistema cautelar. Para o autor a hipótese da garantia da ordem pública se resume a inibir o sujeito de reiterar em conduta delitiva, ou que “acautele” a sociedade, bem como para assegurar a credibilidade das instituições públicas em delitos de agigantado clamor social. Em breve leitura sobre o ponto, na obra elaborada por este autor, salta aos olhos o uso destemido da presunção de culpabilidade e do direito penal do autor.

    Estes entendimentos recebem críticas da doutrina moderna. Para Aury Lopes Junior, o clamor público se pode confundir com opinião pública, ou seja, a opinião rotineiramente publicada pelos meio midiáticos, que não raras vezes, constrói o pressuposto do abalo a ordem social, clamando posteriormente pela prisão cautelar, valendo-se, portanto, de um argumento forjado, que nada possui de características cautelares. Esta posição também é seguida por inúmeros autores “Padeceríamos de uma incerteza jurídica patente, em que a liberdade do cidadão ficaria a mercê das reuniões de pautas editoriais dos jornais, revistas e noticiários televisivos”. (LOPES JÚNIOR, 2011, p. 92.).

    Odone Sanguiné cuida do ponto de forma excepcional. Explica que o clamor público foi tomado como fundamento para a decretação da prisão preventiva e erroneamente transferido para a indeterminada hipótese garantia da ordem pública. Para o autor, estas espécies de fundamentação são:

Fundamentos apócrifos da prisão preventiva – que também poderiam denominar-se fundamentos não-escritos, ocultos ou falsos -, além de supor uma vulneração do princípio constitucional da legalidade da repressão (nulla coactio sine lege), permitem que a prisão preventiva cumpra funções encobertas, não declaradas, mas que desempenham um papel mais importante na práxis processual do que as funções oficiais propriamente ditas.

(SANGUINÉ, Odone. A inconstitucionalidade do clamor público como fundamento da prisão preventiva. Revista de estudos criminais, Porto Alegre, n.10, p.113 a 119, 2003.).

    Delmanto Junior preleciona que ao aprisionar cautelarmente um individuo para garantir que a sociedade se sinta segura, sem temores, necessariamente se estará admitindo a culpabilidade - antecipadamente - do réu. Explica:

    Difícil é a tarefa do magistrado em distinguir se a revolta da sociedade é decorrência do choque que o crime causou no meio social, por si só, ou se a mencionada vingança do inconsciente popular é consequência da exploração e da distorção dos fatos pela mídia. Como visto, muitas vezes não é o crime, em tese cometido, que gera a chamada “vigorosa reação social”, mas sim a desmedida dramatização e até mesmo a alteração da versão dos fatos pela imprensa, ressaltando-se, ainda, que a opinião “publicada” pode não se identificar com a opinião pública, como lembra Alessandro Baratta.

(DELMANTO JÚNIOR, Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p.161.).

    Aury Lopes Junior vai ainda mais longe ao asseverar que a prisão cautelar nestes termos assumiria verdadeiros contornos de prisão antecipada, violando o devido processo legal e a presunção de inocência. Aduz que sua função é desvirtuada, assumindo clara ideia de prevenção geral que em nenhum momento pode ser aceita, por completa afronta ao sistema cautelar.

    É inconstitucional atribuir à prisão cautelar a função de controlar o alarme social, e, por mais respeitáveis que sejam os sentimentos de vingança, nem a prisão preventiva pode servir como pena antecipada e fins de prevenção, nem o Estado, enquanto reserva ética, pode assumir esse papel vingativo.

    Além do clamor público, outros fundamentos invocados na tentativa de conceituar a prisão pela garantia da ordem pública são a gravidade ou a brutalidade do delito, bem como o risco de reiteração de crimes, estes, por evidência, ainda menos relação tem com o sistema cautelar, e mais proximidade encontra com a ânsia de resposta do Estado a um crime bárbaro.

    Para Guilherme de Souza Nucci, estes fundamentos vêm acompanhados ainda da afetação que o abalo cometido à ordem pública pode causar a credibilidade do Judiciário, nas palavras do autor:

Note-se também, que a afetação da ordem pública constitui importante ponto para a própria credibilidade do Judiciário, como vêm decidindo os tribunais pátrios. Apura-se o abalo à ordem pública também, mas não somente, pela divulgação que o delito alcança nos meios de comunicação – escrito ou falado. Não se trata de dar crédito único ao sensacionalismo de certos órgão de imprensa, interessados em vender jornais, revistas ou chamar audiência para seus programas, mas não é menos correto afirmar que o juiz, como outra pessoa qualquer, toma conhecimento de fatos  do dia a dia acompanhando as notícias  veiculadas  pelos órgãos de comunicação. Por isso, é preciso apenas bom senso para distinguir quando há estardalhaço indevido sobre um determinado crime, inexistindo o abalo real à ordem pública, da situação da divulgação real da intranquilidade da população, após o cometimento de grave infração penal.

(NUCCI, 2010, p. 603.)

    Nestes casos se verifica de forma insofismável a tentativa do judiciário em utilizar a prisão cautelar, em sua espécie de prisão preventiva, para resguardar seus próprios interesses. Não há nada de cautela, nada de resguardar o processo, de risco a colheita de provas, de risco as investigações ou em possibilidade eventual de se subtrair a condenação, têm-se exclusivamente o anseio de se apresentar a sociedade uma punição a quem quer que seja, a fim de não se perder a credibilidade da justiça já tão arranhada, punição esta totalmente inconstitucional por não permitir o devido processo legal e a ampla defesa, e principalmente por passar em cima do princípio maior da presunção de inocência.

    Há quem sustente que a ordem pública pode abrigar situações em que a sociedade espera do Judiciário alguma reação diante do suposto delito, e que a inércia afetaria sua credibilidade. Ora, nesse caso, mais adequado ao Estado de Direito que o poder público aja institucionalmente, levando adiante e eficientemente o processo, como previsto em lei, e que a reação do Judiciário seja o julgamento definitivo, e não a aplicação açodada e agoniada de cautelares como resposta estabanada ao apelos populares.

    Entre as conceituações trazidas se constata um descaso na procura do que significaria essa expressão. Basicamente se limitam a expor a possibilidade de reiteração criminosa e a gravidade do crime como sendo a própria ordem pública. Certas fórmulas e expressões prontas são repetidas sem uma maior análise do que essa prática termina por acarretar ao recente Estado Democrático de Direito e às garantias positivadas na Constituição Federal.

    Ainda, para esta corrente que está sendo exposta a folha de antecedentes tem papel fundante para a decretação da medida coercitiva, o estigma não abandona o acusado. Dessa forma, foi o que com brilhantismo expôs Carnelutti:

    A crueldade está em pensar que, tal como foi, deve continuar sendo. A sociedade crava em cada um o seu passado. (…) as pessoas creem que o processo penal termina com a condenação, e não é verdade; as pessoas creem que a pena termina com a saída do cárcere, e não é verdade; as pessoas creem que o ergástulo é a única pena perpétua e não é verdade. A pena, se não propriamente sempre, em nove de cada dez casos não termina nunca. Quem pecou está perdido. Cristo perdoa, mas os homens não.

(CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Pillares, 2009. p. 113 a 117.)

    Como bem argumenta Aury Lopes Junior, o reestabelecimento da credibilidade das instituições é uma falácia, “nem as instituições são tão frágeis ao ponto de se verem ameaçadas por um delito, nem a prisão é um instrumento apto para esse fim, em caso de eventual necessidade de proteção”. Além disso, referidas funções são incompatíveis com a natureza cautelar da medida e, portanto, inconstitucionais.

    Doutro ponto, é temerária e ultrapassada a ideia de que o Estado precise se valer de prisões antecipadas, recolhendo indivíduos que ainda se presumem inocentes para reafirmar a força e o poder da instituição, “Quando os poderes públicos precisam lançar mão da prisão para legitimar-se, a doença é grave, e anuncia um grave retrocesso para o estado policialesco e autoritário, incompatível com o nível de civilidade alcançado”.

    Como informa Luiz Antonio Câmara, “em grave atentado à presunção de inocência”, os tribunais superiores tem empregado à ordem pública o conceito de gravidade do crime, aceito pelo STJ e avalizado pelo STF.

    A doutrina vem discordando destas decisões. Segundo Pierpaolo Bottine:“Não nos parece plausível que a magnitude do dano justifique a prisão preventiva, mesmo porque, pela presunção de inocência, não é possível fundar atos judiciais sobre conduta não valorada por decisão judicial definitiva”.

    Quanto ao risco de reiteração dos delitos, Guilherme de Souza Nucci o sustenta dizendo:

   

Outro fator responsável pela repercussão social que a pratica de um crime adquire é a periculosidade (probabilidade de tornar a cometer delitos) demonstrada pelo indiciado ou réu e apurada pela análise de seus antecedentes e pela maneira de execução do crime. Assim, é indiscutível que pode ser decretada a prisão preventiva daquele que ostenta, por exemplo, péssimos antecedentes, associados a isso a crueldade particular com que executou o crime.

(NUCCI, 2010, p.603.)

    Ainda aduz o referido autor que qualquer uma das hipóteses que preencheriam a lacuna aberta pelo conceito vago de ordem pública devem ser impostas sem a necessidade de união do que chama de trinômio (gravidade do crime + repercussão social + periculosidade do agente), nos seguintes termos:

Mas não se pode pensar nessa medida exclusivamente com a união necessária do trinômio aventado. Por vezes, pessoa primária, sem qualquer antecedente, pode ter sua preventiva decretada porque cometeu delito muito grave, chocando a opinião pública (ex.: planejar meticulosamente e executar o assassinato dos pais). Logo, a despeito de não apresentar periculosidade (nunca cometeu crime e, com grande possibilidade, não tornara a praticar outras infrações penais), gerou enorme sentimento de repulsa por ferir as regras éticas mínimas de convivência, atentando contra os próprios genitores. A não decretação da prisão pode representar a malfadada sensação de impunidade, incentivadora da valorização e pratica de crimes em geral, razão pela qual a medida cautelar pode torna-se indispensável. Mas, como regra, o ideal é respeitar a ocorrência conjuntiva dos três fatores (gravidade do crime + repercussão social+ periculosidade do agente).

(NUCCI, 2010, p.603.)

    Nota-se com clareza que o ilustre autor se preocupa com uma função de política do Estado, completamente alheia ao objeto da medida cautelar, quiçá do processo em si, logo, por mais credibilidade que possua sua preocupação, não é com a prisão cautelar que o Estado deve encetar esforços em busca de impedir a reiteração de crimes ou acalmar os ânimos da sociedade, pois referida medida é totalmente inconstitucional para este fim, neste sentido Aury Lopes Junior ensina:

    A prisão para garantia da ordem pública sob o argumento de “perigo de reiteração” bem reflete o anseio mítico por um direito penal do futuro, que nos proteja do que pode (ou não) vir a ocorrer. Nem o direito penal, menos ainda o processo, está legitimado à pseudotutela do futuro (que é aberto, indeterminado, imprevisível). Além de inexistir um periculosômetro (tomando emprestada a expressão de ZAFFARONI), é um argumento inquisitório, pois, irrefutável. Como provar que amanhã, se permanecer solto, não cometerei um crime? Uma prova impossível de ser feita, tão impossível como a afirmação de que amanhã eu o praticarei. Trata-se de recusar o papel de juízes videntes, pois ainda não equiparam os foros brasileiros com bolas de cristal...

(LOPES JÚNIOR, 2011, p. 97.)

    Dito isto, percebe-se que os argumentos que tentam completar o conceito de ordem pública em nada acautelam o processo, mas somente visam armar o julgador com fundamentos de pura retórica, incapazes de salvaguardar as garantias constitucionais do indivíduo, principalmente no que diz respeito a presunção de inocência e a natureza cautelar da prisão processual.

    Luiz Antônio Câmara é direto ao afirmar que: Não há dúvida de que todas essas situações importam em evidente atentando ao princípio constitucional da presunção de inocência. Todos esses referenciais revelam equiparação do acusado ao condenado, com prévia consideração de culpabilidade. (CÂMARA, 2011, p. 133.)

    Ora, do que nos adianta uma salva de palmas toda vez que nos intitulamos uma país democrático de direito se, na prática, todos os dias temos decisões em qualquer grau de jurisdição, decretando prisões preventivas com base na gravidade de um delito, ou na folha de antecedentes criminais do acusado que são, usualmente, as duas primeiras características pelas quais os juízes passam os olhos, sem observarem toda a principiologia da medidas cautelares e passando por cima de princípios constitucionais.

    Constituindo a liberdade física do indivíduo um dos dogmas do Estado Direito, é natural que a Constituição fixe certas regras fundamentais a respeito da prisão de qualquer natureza, pois a restrição ao direito de liberdade em qualquer caso, é medida extraordinária, cuja adoção deve estar sempre subordinada a parâmetros de legalidade restrita. (...) No caso da prisão cautelar, essas exigências se tornam ainda mais rigorosas, diante do preceito constitucional segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o transito em julgado de sentença penal condenatória” (art.5.º, LVII, da CF); em face do estado de inocência do acusado, a antecipação do resultado do processo representa providencia excepcional, que não pode ser confundida com a punição, somente justificada em situações de extrema necessidade. (...) Além desse postulado fundamental à disciplina da prisão de natureza cautelar, sobressaem no texto da Lei Maior as garantias da jurisdicionalidade e do devido processo legal.

(GRINOVER, 2009. p. 263.).

    O que também preocupa é verificar que certos juízes não dão a importância devida a prisão processual, ou melhor, a prisão em si mesma, a liberdade individual é uma das maiores conquistas da humanidade, comparada com o direito a vida, não pode ser restringida, a não ser, por decisão excepcional e harmoniosa ao sistema cautelar previsto na Constituição Federal, a ultima ratio.

    Os valores fundamentais do moderno processo penal são a efetividade, de um lado, e as garantias, de outro. Não creio em absoluto que esses dois valores estejam em conflito: a efetividade, na visão instrumental do sistema processual, é posta a serviço dos escopos jurídicos, sociais e políticos da jurisdição, que são o de atuação de vontade concreta da lei penal, o de pacificação com a justiça e o de participação dentro do processo e pelo processo. Por sua vez, o garantismo há de ser visto tanto sob o ponto de vista dos direitos subjetivos das partes e, sobre tudo, da defesa, como enfoque objetivo da tutela do próprio processo, configurado o principal meio de legitimação do exercício da jurisdição. (...) No processo penal, como já aventado, a utilização de cautelares é traumática, pois, em regra, afeta o direito de liberdade de locomoção, direito este inerente à dignidade do ser humano. (...) As prisões cautelares e os respectivos habeas corpus são institutos processuais atualmente mais importantes do que as sentenças e as apelações.

(MOURA, et al. 2009. p. 452 a 454.)

    Destarte, o motivo de alarde é que recentemente foi aprovada a Lei 12.403 de 04 de Maio de 2011, que embora tenha melhorado e muito a sistemática das prisões cautelares, manteve a hipótese de prisão preventiva para garantia da ordem pública.

    Mesmo que as comissões encarregadas de apresentar anteprojetos de Reforma ao Código tenham excluído a expressão ordem pública, a substituindo por expressões de natureza objetiva, curiosamente tal tendência não se manteve nem mesmo no Projeto de Lei 156/2009, que ressuscitou a polêmica expressão.

    Aury Lopes Junior é destemido em asseverar que "a Lei 12.403/2011 não evoluiu em nada. E mais, representou, inclusive, um retrocesso à Luz do Projeto de Lei 4208/2001, originalmente apresentado (cuja redação era muito melhor e abandonava as categorias “ordem pública” e “ordem econômica”).

    Ainda segundo Aury Lopes Junior, com razão, na redação original do Projeto de Lei 4208/2001, havia sido modificado totalmente o artigo 312 do Código de Processo Penal, inclusive, no parecer do Relator, Deputado Ibrahim Abi-Ackel, se destacava que eram enunciadas com clareza as hipóteses de cabimento das medias cautelares, suas aplicações, revogações, descumprimentos e substituições, fugindo totalmente das causas indeterminadas, como o caso da prisão preventiva para garantia da ordem pública, a qual teria sido substituída por expressão precisa das circunstancias que a justificam.

    Contudo, após todas as discussões a respeito do tema, foi aprovada Emenda Substitutiva Global que resgatou o texto original de 1941, um verdadeiro retrocesso.

    Cabe fazer referência novamente ao princípio da inocência o qual, aparentemente, foi esquecido ou banalizado pelo Congresso Nacional, para Luiz Flávio Gomes a presunção de inocência, prevista no art. 5, LVII, da Constituição Federal, não é mero modismo do Brasil. Este postulado encontra-se calcado desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)  seguida pela Declaração Universal de Direitos Humanos (1948). Estes serviram de inspiração à Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e ao “Pacto de San José de Costa Rica” para que estes trouxessem a garantia da liberdade do indivíduo.

    Diante de todo o exposto, este estudo demonstrou a incoerência da manutenção da prisão preventiva para garantia da ordem pública, na Lei 12.403/2011, onde mesmo circundado de fundamentos suficientes para a exclusão da hipótese de prisão preventiva, o Congresso Nacional, por motivos não conhecidos, ignorou a inconstitucionalidade da ordem pública, incluindo uma hipótese de autorização da prisão cautelar vaga, indeterminada e imprecisa, em completo desacordo com o sistema cautelar.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

    Tratando-se de medida de restrição da liberdade pré-condenação, de caráter puramente cautelar, a prisão processual deveria visar tão somente à proteção do regular desenvolvimento do processo, a luz de uma principiologia sistêmica, e quando presentes os requisitos formadores do fumus commissi delicti e do periculum libertatis.

    Ao longo do trabalho se observou que a garantia da ordem pública como hipótese permissiva de decretação da prisão preventiva, apesar de se manter devidamente inserida no ordenamento jurídico brasileiro, é ponto extremamente controvertido, e atacado de forma maciça pela doutrina moderna.

A importância do tema se verifica uma vez que a previsão legal de um fundamento vago, desprovido de significado e totalmente assistemático, gera patente risco ao direito constitucional de liberdade do individuo.

    O melhor entendimento, sopesando toda a pesquisa desenvolvida, é o imperioso reconhecimento da total incongruência da hipótese ordem pública com os princípios informadores da Constituição Federal, seguindo-se o entendimento da maioria da doutrina, no sentido de que a garantia da ordem pública é uma patente imputação de pena antecipada, gerando grave risco de lesão, impossível de ser reparado, contra um dos bens mais valiosos da dignidade humana, a liberdade.

REFERÊNCIAS.

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  • LOPES, Aury Júnior. Novo Regime Jurídico da Prisão Processual, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2011.

  • MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis et al. As reformas no processo penal: As novas leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

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